... e Bernarda Diniz Casimiro.

... Perante o mesmo sagrado desespero de não poder sonhar-me outra nesta inutilidade

do tempo, aprofundo o olhar sobre o Inverno e recordo-me que houve um ano

em que me dei conta de que o sofrimento tem alguma coisa de maravilhosamente

violento ao mesmo tempo que te abre a cabeça exageradamente para um outro

mundo

tão perfeitamente escuro e quieto que só a dor brilha pelo brilho de si mesma

nessa loucura inconsequente

a que chamamos os nossos dias. Dias há que me deito sobre o leito e deixo-me

estar

procurando a luz do sol que se esguia pelos cantos da cama

onde me deito dormindo sofregamente a luz amarelada.

Ontem, um dos meus filhos, deixou-me deleitadamente beijá-lo,

engolir-lo em cada golfada de ar, a minha boca encostada ao seu rostinho

moreno, de olhos gigantes.

Num minuto, ele desapareceu, e hoje mal me lembro do seu rosto.

Nunca chamo pelos meus mortos, mas às vezes eles alongam-se

nos curtos corredores da minha casa causando sobressaltos aos incautos

que só vivem em fragmentos de si.

                 ... a realidade do absurdo da dor nos meus dias, vejo-o claramente,

que veio e ficou e que não irá para onde eu não for.

Essas tentativas de dias de felicidade são a dignidade que me mantém

viva

indo, sem nunca ir para muito longe que não me veja,

por mais que tente,

e hoje não tento muito.

Aceito as coisas que são

e só me escondo mais escondida

por debaixo dos lençóis azuis da minha cama enquanto vejo o dia passar à margem de mim.

E o dia segue, impávido, ao meu lado.

A culpa dos dias que se vão foi-se pois que não vejo tantos dias que me façam assim tão

meramente querer viver. Os dias vão-se com o alívio de os ver ir, sabendo que não volto

e que tenho menos dias que suportar nesta inutilidade

que quase todos chamam vida.

Quase todos vivem exilados em si, desconsolados do outro que quase nunca sabe 

senão viver em exílio do seu ser que do espelho lhe exige atenção.

- Fazias bem em não te ver ao espelho... eu só me vejo ao espelho para saber quem sou.

Por fora, digo. Por fora nunca me vejo, nem tudo e nem nada. Por dentro sou tão velha

e cansada e doente e forte e sempre viva para vos dar alento apesar de mim.

Por isso vejo-me ao espelho, de vez em quando, para saber quantos anos tenho hoje.

Quero misturar o sonho na vida e deixar que a dor e a humanidade corram de mãos dadas

e que eu possa assim ser, um belo ser humano. Belo o meu ser na verdade que tem sido ao se perder.

Sem si, o meu ser poderia ser uma coisa tão extraordinariamente diáfana e sorridente, tão cheia só de abraços

como os desejo, os vossos abraços.

                Ao menos dou-vos os meus braços nas pontas dos meus dedos que vos escrevem para se poderem saber

insanamente vivos neste tédio de dor no desespero de o ser.

Se fosse Rainha, Bruxa, Anjo, erguer-me-ia para o que poderia ser tão lindo. Ergo-me. E é tudo lindo.

E é tudo só isso. E é tudo tão sem nada dentro de si que tenho que me olhar ao espelho para saber se acaso 
tenho muitas coisas por fora e se sou por dentro, e por fora.

Resigno-me, sem todos os silêncios necessários, e sonho com Caetano Veloso, Fernando Pessoa e Camões.

Só homens, que chatice. Quero sonhar com Clarice Lispector, Amália Rodrigues e Bernarda Diniz 

Casimiro.



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