Vejo a porta do quarto das meninas
caída no chão
Na casa da minha bisavó as portas eram de vidro
para os homens maus não entrarem nos quartos
das meninas
sem que alguém os visse
A minha irmã tirou todas as portas da casa
o meu marido
também
são iguais os dois, quase iguais
ela sabe o que havia atrás da porta
e ele também
e são os dois muito cuidadosos
quando me soltam os dedos entalados nas ombreiras.
Havia uma porta escondida atrás da vitrine
que ficava frente à porta principal
eu costumava abri-la e descia à cave escura
e escondia-me
deitada na cama do meu avô
já morto tão jovem que nem avô poderia chamá-lo
chamava-se José Maria de Ganso e Gançoso
o meu avô
que na cave escura se queixava do cheiro de naftalina
que lhe envolvia as roupas que enchiam o guarda-fatos.
Chamava-se guarda-fatos. Poucos sabem o que isso seja
mas imaginam
Ficávamos os dois escondidos depois de se acenderem
tremelicando
as luzes da capela
construída ao lado do quarto
Depois que a minha bisavó fez as pazes com Deus
ela mandou erguer outra capela
quando o José Maria morreu tinha destruído tudo
todas as portas todas as capelas todos os santos
todos os altares
ficou-lhe na mão o último pedaço de pão
do José Maria
eu fechava os ouvidos com as mãos para não o ouvir
gemendo
tossindo
chorando
morrendo
não entendo
não entendo como as pessoas não entendem que viver
é coisa de um segundo
e que estaremos mortos pela eternidade
Deixo recados no gravador
para a minha irmã saber que eu sei
Calo-me para o meu marido saber
mas ele não sabe de nada
e ela nunca me liga de volta
Telefono a meio da noite à minha mãe
tenho uma dor tão grande e tão sangrenta
no fundo da barriga ligeiramente inchada
Telefono-lhe a chorar
porque morreu o meu pai
morreu o meu padrasto
morreram os homens
e quando ela atende
paro de chorar
Ela também não sabe de nada
. Perdoo-lhes tudo.
E de novo adormece minha mãe
e a minha filha pede desculpas
porque morreram todos
Tenho tantas saudades do meu marido
Tenho tantas saudades da minha bisavó
Tenho tantas saudades do riso da minha irmã
e dos caracóis do meu irmão
e os outros irmãos e irmãs todos, tantos
se ao menos o telefone tocasse e um deles me viesse buscar
ou simplesmente
esperasse que eu adormecesse
Tenho tantas saudades de amar sem medo da morte em vida
que mos leva a todos
e me deixa aqui digitando poemas que só um ou outro lerão
provavelmente
Escrevo para não enlouquecer de dor
quando escrevo, a dor desfaz-se nas letras que crescem e formam
palavras
que se fazem filhas
Que bom que nunca tive um menino
os homens na minha família ou morrem cedo
ou matam quem fica
mal o meu que fiquei
porque os que não morreram de tuberculose
morreram depois
que eu fiquei
. Ainda fico.
Um destes dias, vou-me pôr atrás da porta
da entrada e nunca mais de lá saio.
Nossa Senhora Santa Luzia iluminai os passos dos homens
e dai-nos bengalas
para que os sigamos de olhos fechados sem cair
Assim sigo
até à porta da entrada.
Já não sei quem era que dizia que isso não importava lá muito.
Deixei a porta fechada, naquela esperança difusa de que tenham que a deitar abaixo.
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