O Som

"Então sr. guarda, sobrou alguma coisa? Ele olhou de longe, como que a certificar-se que não estava cego, e que na casa não havia absolutamente nada. A voz que o interpelava era masculina mas o barulho que imperava no silêncio era o de uma mulher, que gritava emudecida. O guarda olhou-o e respondeu "Nada, não sobrou nada, pode interditar a casa." Mas deixou-se ficar de ouvido colado às paredes... o grito ouvia-se estridentemente, como se àquela lhe tivessem arrancado o filho vivo dos braços, ou o filho morto da barriga. Desistiu de tentar descobrir alguma coisa. Claramente não havia nada para descobrir, era uma alucinação auditiva, pensou. Andando lentamente em direção à porta, já um x vermelho avisando a quem quisesse entrar que ali não era abrigo, deu conta que lhe caia uma levíssima, furtiva lágrima. Pensou, muito baixinho e cheio de dó, "quem seria que assim gritava?" e o pensamento fazendo-se pouco a pouco inaudível, ele afastou com cuidado as fitas vermelhas e saiu.

Dentro da casa, ficaram então as paredes e o teto baixo. O chão alongava-se em traves de madeira
 
velha que chiavam com a humidade no Inverno.
 
A luz já tinha sido cortada há tempos mas por 
qualquer motivo tinham-se esquecido de fechar a àgua. Caia um pingo lento da torneira da cozinha e uma formiguinha atrevia-se a enfrentar a tempestade, caminhando furiosamente na pia de lavar a louça. Na pia onde se teria lavado a louça. Naquele gesto que as formigas só fazem nos contos mágicos, percebia-se que o grito não tinha diminuído de volume. A formiguinha levava as mãos à cabeça como que tapando os ouvidos, depois voltou à sua posição de inseto ancestral e desistiu, sumindo-se ralo abaixo.

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