Dos rios que vão de Kabul...
Depois de habituarmos os olhos à
luz podia-se ver a cómoda, a cama e as mesinhas-de-cabeceira. Aos poucos
discernia-se a figura de um homem.O vulto masculino de um homem alto, magro, o
cabelo escuro, cortado curto. Na escuridão do quarto não era possível
discernir-lhe as feições. Por mim, não precisava ver, desenhá-lo-ía, se
necessário fosse, de olhos fechados. Os contornos ossudos do rosto, os lábios
grossos, os olhos negros, a tez escura, emaciada agora... . De vez em quando
preciso de me encostar à velha e gorda
cómoda que me ampara como uma avó. Mas
agora devo debruçar-me sobre a cama e ser a amantíssima enfermeira e a amiga
cega e desmemoriada que se necessita sem delongas. Assim sou. Da cama de
espaldar alto e negro mal se recorta a sua figura. A do bem-amado, um homem por
baixo dos lençóis suados e sujos. Manchados de sangue. Destapei-o para lhe mudar as ligaduras. Ele falava sem parar,
murmurando frases que só para mim podiam
fazer algum sentido. Conhecia-o tão bem que nem precisava de ouvir o que dizia.
Sabia que falava da mulher e da filha pelas imagens que se atravessavam no seu
olhar. Sabia que falava delas, desiludido, magoado, mal podendo acreditar que
só eu estava ali.
Desisti
de lhe mudar as ligaduras. Pus lençóis limpos na cama numa tentativa absurda de
que o branco daqueles lençóis lhe inundasse a memória. Ele chorava. Tinha
acreditado nelas até ao fim, e eu nunca tinha tido a força que era precisa para
que ele pudesse ter encarado a realidade sem medo. Agora jazia ali, os restos
de um homem, sem nada. Mudar-lhe as ligaduras para ver a desgraça que sentia?!
O espectáculo era-me insuportável, o que é que adiantaria mudar as ligaduras?
Arranjei forças para fingir que lhe ralhava; que se calasse, a chorar para quê,
não havia nada a fazer, a emendar. A lamentar, tudo. Lamentavamos a guerra por
acabar, as ruas em ruínas, as mulheres e as filhas que não podiam resistir ao
medo que se entranchava pelas janelas entaipadas e pelos buracos das balas nos
tijolos a descoberto e corriam como loucas pela calada da noite em direcção à
fronteira.
Fechei a porta a saí para a rua.
Fui ter com o outro. Um homem inteiro e um corpo são que me fizesse esquecer a
violência da gaze vermelha e de um lugar vazio. Atravessei a escuridão
ignorando as vozes sussurradas dos soldados e entrei pelo prédio dentro já
tocando a campainha da porta, réstias de música e normalidade. Breve,
imperceptivelmente, como se não quisesse ser ouvida. Era tarde demais.
- Tenho os meus pais cá em casa.
- Que não nos ouçam.
Abraçei-o rindo, agarrei-o com
cócegas e murmúrios até o empurrar para cima do colchão. Fechei a porta e
deixei-me cair por cima do seu corpo.
Sei
que fizemos amor. Mas apenas me resta a sabedoria do acto já que esqueci tudo.
O como do prazer. Sei que nunca quereria falar dele para além de um contorno
obsessivo que se esbate no meio dos acontecimentos. A realidade que me fez
cortes na pele como fazem as pontas das navalhas afiadas era outra. Imprimida
na memória como se imprimiria na casca de uma árvore as letras do momento
desejado. Saí de casa dele ainda de noite e andei pelas ruas da cidade como se
não quisesse ir para lugar nenhum. Acabei sentada nas escadas do que restava de
um shopping qualquer a reparar que amanhecia. Levantei-me para continuar a
andar. Passei a única casa parada no tempo da construção do sonho onde, na
varanda, todos riam, cantavam e dançavam
por entre o cheiro do fumo e as cinzas da erva queimada. De lá de cima um
gorducho imune à fome de comida convidava-me a entrar.
-Vem dançar conosco, miúda boa!
Sorri-lhe e continuei a andar.
Aos poucos, o calor ia-se tornando sufocante e o ar viscoso trazia uma brisa que
colava o suor ao rosto.
Não me recordo de mais nada até
chegar à praia. Sem que eu possa descrever como, chegamos os três, amassados
dentro do que restava de um Mini. Eu, o outro e o Kabul. Kabul é o meu cão.
Insisto, Kabul é o meu cão. Um doberman preto, alto e esguio com quem me
entendo para lá das palavras. É meu, o meu cão e tem nome e esteve sempre, sempre
comigo, e com ele. Mesmo no quarto, no meio das ligaduras e das lágrimas, das
fotos e do pó escuro que se escapa pelas frinchas do que seriam janelas. Eu,
ele e o Kabul, de quem gostava tanto.
Na
praia caminhamos, eu e o outro, lado a lado, como se um corpo são pudesse
substituir tudo. O Kabul corre à nossa frente, depressa demais. A velocidade
com que se move ultrapassa a velocidade do meu olhar e subitamente já não o
vejo. Já não sei sequer se ainda damos as mãos. Só sei que está muito calor,
que o meu cabelo é uma pasta contra o rosto e que o vento é uma espécie de
saliva. Disse-lhe qualquer coisa a respeito de uma carta que lhe tinha escrito
há cerca de um ano e onde me lembrava de lhe ter descrito esse calor húmido e pegajoso que agora se nos agarrava
aos cabelos e à roupa. Mais tarde, disse-me que já lá tinha estado, muito antes
da minha carta, e que também ele já sabia daquele calor. Suávamos os dois.
Chegou
de repente, o céu escuro, negro de
nuvens espessas, a pouca luz que ainda se podia ver era inacreditavelmente
cor-de-laranja. Parca, translúcida, diáfana e cor-de-laranja, indiferente à
negrura inapelável das nuvens que se estendiam para além do céu e do mar e de
um mundo que perdi há muito. Comecei a gritar, gritava por Kabul, que não voltava,
não vinha. O céu feito de noite levantava um vento de facas. E o vento que se
levantava comia a carne. Corremos. Ele correu tanto que desapareceu da minha
vista. Sei que corria comigo até à altura em que parei para, de novo, gritar
por Kabul. Parado em frente ao rio
ladrava, ladrava sem parar e sem som face ao rugido das ondas que apagava tudo
menos o silvo agudo do vento (ou das balas?). Quando finalmente me consegui
aproximar do Kabul, uma sombra, de quem não sei que fosse, puxou pela minha mão
com uma violência sobrehumana de quem corria comigo e para lá de mim. Só para
depois continuar a correr. Sem mim.
A tempestade foi brutal, embora
não a possa reviver já que corri e não vi. Não
presenciei. Mas sei.
Voltei à beira do rio para ajudar
a puxar os milhares de corpos que se amontoavam pela areia e pelas rochas.
Mortos (pelas espingardas) pelas águas e pelo vento. Ou sufocados pelo calor e
pela areia. A beira do rio é um monte de cadáveres.
Passaste por mim porque te senti.
Também puxavas os mortos para cima. Mas não eras tu quem procurávamos. Eu e o
Kabul vimo-lo ao mesmo tempo. O bem-amado. Era melhor assim, convencia-me,
tinha sofrido menos. Pus-me de cócoras na areia molhada e enterrei as mãos por
baixo dos braços dele para o poder puxar para o meu colo. Fiz força e enlacei-o
de volta para mim. A cabeça dele agora repousando nos meus joelhos. Afastei-lhe
os cabelos dos olhos e só sabia como ele
era lindo enquanto as lágrimas me turvavam o olhar. Kabul, sereno, esperava ao
nosso lado.
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