Desnudados dias

Não posso mais falar de rosas e nem de gelo, jamais ice, jamais rosinhas, teu corpo quente do meu lado e eu tentando que chegasses mais perto, mas sempre te afastavas, ice era eu. Gelada, sempre estou gelada, o esboço de um cadáver. Que lindo...não sei quem falou isso, algum poeta com toda a certeza, quero escrever concerteza, mas é um erro, me falou meu professor, amante, que me arrancou do meu canto. Tudo o que faço, faço por amor. Morro por amor, uma mistura qualquer entre Fernando Pessoa e  a outra que morreu de tristeza e só escrevia versos de amor Espanca, Florbela Espanca. Como Fernando Pessoa finjo que sou Florbela Espanca e finjo tão completamente que acredito que sou a Florbela... choro três horas seguidas, passeando de lá para cá e de cá para lá, ululando, esperando que o grito afaste o horror da violência que não vi. Quando era menina e via meu pai espancando minha mãe até sair sangue pela boca calava-me, calava a boca de minha irmã, tapava-lhe a boca: não grites menina, se gritares a seguir sou eu. Ela não, a ela não lhe batia. Ela amava-o apesar da porrada com que porradeava - excelente verbo - sua mãe e sua irmã. Talvez nao lhe fossem nada, só ele era o pai, passando lentamente os dedos pelas pernas, o sexo inocente das meninas que banhava. Nós ficavamos de pé na banheira, e ele lavava-nos...lavava-nos...sei lá o que ele fazia, também se metia na banheira connosco, nu. Todos nus. Duas meninas talvez quatro e cinco anos, e um homem adulto, talvez não tão adulto, nojento, na banheira. Onde estava minha mãe? Provavelmente recuperando da porrada. Usarei vulgaridades ao longo da minha prosa que titulo exemplar, procurando exímia, o equilibrio entre a prosa e a poesia, o passado e o presente. Futuro, não há. Não por aqui, não por enquanto. Penso em todos os meus cachorros, cachorras, cadelas sem luxúria, só animais de estimação pouco estimados. Sinto-me culpada de quase todas as mortes. A primeira, Betty, morreu atropelada. Nós já tínhamos escapado aos atropelos de meu pai, minha bisavó também. Mas não a cadelinha. Era pequeninita, branca e preta, com certeza rafeira, não tenho a certeza. A última morreu à porrada. Chamava-se Rosinha, ou Ice. Moramos na Amérdica do Norte, os animais têm que ter nome inglês, mas morrem como a criança ou a mãe podiam ter morrido, à porrada, na porrada, em Portugal. "She fought hard though", defendeu-se. Devia tê-lo morto à dentada...pensei nisso mais do que uma vez, que ela devia tê-lo morto à dentada, como fazem os pitbulls enlouquecidos, mas ela era uma pit vaca, uma vaquinha no fundo do poço. Defendeu-se porém. Eu não tinha como me defender, acho que minha mãe também não. A minha bisavó ficou à frente do carro, disse, para lhes tocares tens que me passar por cima, e ele acelerou, mas travou logo depois, nós gritamos muito, corremos, agarramos-lhe as pernas, as mãos. A minha bisavó parecia-me tão alta como a Torre Eiffel, tão forte como o mais forte dos fortes que nascem pelas praias portuguinhas, brasileiras, africanas...acho que existe um forte qualquer assim no meio da Arábia...não sabia que os portugueses também eram das Arábias. Faz sentido. E ele foi-se embora. Gostaria muito de dizer: nunca mais o vi. Mas mentiria. Vi-o umas quantas vezes mais, senti-lhe o pau duro contra as minhas costas enquanto fingia que me abraçava com uma força desnecessária. E um medo frio que me paralisava tanto quanto a força com que me agarrava. Dez anos depois. Nessa altura já não porradeava ninguém. Na Suécia se porradeamos pessoas vamos presos, não é como em Portugal, ou no Brasil, ou Cabo Verde onde quase nada é verde. Na Suécia onde tudo é branco e existem bibliotecas com a obra completa da Agustina Bessa Luís no meio de aldeiazitas no meio da floresta, na Suécia vamos presos se porradeamos seres vivos, principalmente os nossos filhos.

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